Artigo de Marcelo 'Dr. Beretta' Barazal

Visão noturna e térmica: O que é (ou não é) PCE

Artigo explica como a falta de regulamentação afeta usuários, mercado e fiscalização. Saiba o impacto do decreto 10.030 e da Resolução ITA 14B

Mira noturna é PCE?
Vácuo legislativo cria problemas para o mercado de miras térmicas e noturnas. Na foto, um fuzil Horizon, .22 Creedmoor (Reprodução/Outdoor Life)

A regulamentação de equipamentos de visão noturna e térmica no Brasil sempre foi um campo nebuloso. Fabricantes, importadores, atiradores, caçadores e até órgãos de fiscalização convivem há anos com incertezas decorrentes de normas incompletas, interpretações divergentes e lacunas regulatórias.

Com o decreto 10.030/2019 — que substituiu o antigo R-105 — acreditou-se que o cenário finalmente ganharia clareza. Contudo, ao tratar equipamentos de visão noturna e termais como PCE (Produtos Controlados pelo Exército) somente quando destinados ao uso militar ou policial, o decreto criou uma norma que, na prática, depende de regulamentação complementar para ser aplicada corretamente.

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A revogação recente da ITA (Instrução Técnico Administrativa) 14B, da DFPC (Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados) que trazia justamente essa complementação, reacendeu dúvidas e deixou novamente um vácuo normativo que precisa ser preenchido com urgência.


O decreto 10.030 e a ‘norma em branco’

O Art. 15, §2º, X do Decreto 10.030 estabelece que apenas equipamentos de visão noturna ou termais de uso militar ou policial são considerados de uso restrito.

O texto, porém, não define o que caracteriza “uso militar ou policial”, criando o que o Direito Administrativo chama de norma em branco — isto é, uma regra que depende de outra norma para ter aplicabilidade plena.

Esse modelo não é incomum:

  • A Lei de Drogas depende de listas complementares do Ministério da Saúde;
  • Crimes ambientais dependem de definições do Código Florestal;
  • A infração sanitária do art. 268 do Código Penal depende de atos estaduais e municipais.

Da mesma forma, o Decreto 10.030 precisa de uma instrução administrativa que diferencie claramente o que é um equipamento civil de visão noturna e o que é um equipamento militar/policial.

Sem essa definição, até uma simples câmera de vigilância com infravermelho poderia, em tese, ser enquadrada como PCE, o que seria um completo absurdo jurídico.


O papel da ITA14B (e da ITA27) e por que foram revogadas

A antiga ITA 14B, posteriormente alterada pela ITA 27, preenchia a lacuna conceitual do decreto ao definir quais equipamentos deveriam ser considerados de uso restrito.

Ela classificava como PCE, por exemplo:

I – Equipamentos de visão noturna de Geração II ou superior

  • Geração II: maior resolução e sensibilidade.
  • Geração III e IV: maior alcance, durabilidade e resistência à luz.

II – Equipamentos termais passivos resfriados

  • Tecnologia de alta sensibilidade térmica, tipicamente usada em aplicações militares.

III – Termais com alcance ≥ 250m pelo Critério Johnson

  • Capacidade de detecção com 90% de probabilidade a longas distâncias.

IV – Lunetas com recursos termais ou de visão noturna

Essas definições, embora técnicas, acabaram abrangendo quase todos os equipamentos modernos, criando um conflito direto com o Decreto 10.030 — que restringe apenas o que é de interesse militar ou policial, não tudo que é tecnologicamente avançado.

Por que a ITA 14B/27 foi revogada?

Porque extrapolava o decreto, tornando praticamente todo o mercado de visão noturna e termais sujeito a controle restritivo — inclusive produtos sem aplicação militar, violando o princípio da legalidade e da hierarquia normativa.

A revogação devolveu coerência jurídica, mas deixou um vácuo: agora não existe norma que defina objetivamente o que é “uso militar/policial”.


Consequências para o setor e a fiscalização

A ausência de uma regulamentação complementar clara produz:

→ Insegurança jurídica

Fabricantes, importadores e usuários não sabem exatamente o que pode ou não pode ser vendido, importado ou utilizado.

→ Interpretações abusivas

Agentes fiscalizadores, sem parâmetro técnico, podem classificar erroneamente qualquer miras termal como PCE, muitas vezes de forma ilegal.

→ Prejuízo à inovação e ao mercado

Restrições excessivas freiam pesquisa, desenvolvimento e competitividade de empresas brasileiras.


O equívoco recorrente: “Todo acessório é PCE”

Alguns fiscais usam o conceito de “acessório de arma de fogo” do glossário do Decreto 10.030 como justificativa para autuar usuários.

Mas esse raciocínio é juridicamente incorreto.

Exemplo clássico: lunetas, red dots e miras holográficas.
O STF (Supremo Tribunal Federal), na Rcl 67.612/SC (2024), confirmou que não são PCE, porque nunca foram listadas formalmente como tal.

Isso desmonta o argumento de que “melhorar o desempenho do atirador” torna automaticamente um acessório controlado.


Parâmetros Internacionais: O caminho para a regulação

Como o decreto fala em “uso militar”, a classificação deve seguir referências reconhecidas internacionalmente:

→ Arranjo de Wassenaar

Define tecnologias sensíveis e critérios para controle de exportação.

→ Regulamentos da União Europeia

Possuem listas detalhadas de equipamentos militares e de dupla aplicação.

→ Sistema de Catalogação da OTAN (NCS)

Embora não seja norma de controle, fornece categorização logística que ajuda a identificar equipamentos genuinamente militares.

Esses padrões deixam claro que um equipamento civil de caça ou observação ambiental não se torna militar apenas por ter boa qualidade óptica ou eletrônica.


A urgência de uma nova regulamentação

O cenário atual exige que o Exército publique uma nova instrução técnica que:

  • Defina objetivamente o que caracteriza uso militar/policial.
  • Diferencie equipamentos civis avançados de equipamentos militares sensíveis.
  • Evite criminalização indevida de atividades lícitas, como caça e tiro esportivo.
  • Harmonize o controle com a legislação federal e com padrões internacionais.

Uma regulamentação moderna precisa considerar o estado da arte: fusão de sensores, inteligência artificial, realidade aumentada e dispositivos multispectrais — recursos já comuns em equipamentos civis e militares.


Segurança jurídica depende de nova norma do Exército

A revogação da ITA 14B eliminou um excesso regulatório, mas deixou um vazio. O Decreto 10.030 continua válido, mas sem regulamentação clara seu dispositivo torna-se de difícil aplicação, abrindo espaço para arbitrariedades e fragilizando o ambiente jurídico do setor.

Para garantir segurança jurídica, estimular inovação e respeitar direitos individuais, é essencial que o Exército publique uma norma técnica equilibrada, transparente e alinhada com padrões internacionais”.

Somente assim será possível diferenciar corretamente equipamentos civis e militares, protegendo tanto o mercado quanto o interesse público.