
A regulamentação de equipamentos de visão noturna e térmica no Brasil sempre foi um campo nebuloso. Fabricantes, importadores, atiradores, caçadores e até órgãos de fiscalização convivem há anos com incertezas decorrentes de normas incompletas, interpretações divergentes e lacunas regulatórias.
Com o decreto 10.030/2019 — que substituiu o antigo R-105 — acreditou-se que o cenário finalmente ganharia clareza. Contudo, ao tratar equipamentos de visão noturna e termais como PCE (Produtos Controlados pelo Exército) somente quando destinados ao uso militar ou policial, o decreto criou uma norma que, na prática, depende de regulamentação complementar para ser aplicada corretamente.
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A revogação recente da ITA (Instrução Técnico Administrativa) 14B, da DFPC (Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados) que trazia justamente essa complementação, reacendeu dúvidas e deixou novamente um vácuo normativo que precisa ser preenchido com urgência.
O decreto 10.030 e a ‘norma em branco’
O Art. 15, §2º, X do Decreto 10.030 estabelece que apenas equipamentos de visão noturna ou termais de uso militar ou policial são considerados de uso restrito.
O texto, porém, não define o que caracteriza “uso militar ou policial”, criando o que o Direito Administrativo chama de norma em branco — isto é, uma regra que depende de outra norma para ter aplicabilidade plena.
Esse modelo não é incomum:
- A Lei de Drogas depende de listas complementares do Ministério da Saúde;
- Crimes ambientais dependem de definições do Código Florestal;
- A infração sanitária do art. 268 do Código Penal depende de atos estaduais e municipais.
Da mesma forma, o Decreto 10.030 precisa de uma instrução administrativa que diferencie claramente o que é um equipamento civil de visão noturna e o que é um equipamento militar/policial.
Sem essa definição, até uma simples câmera de vigilância com infravermelho poderia, em tese, ser enquadrada como PCE, o que seria um completo absurdo jurídico.
O papel da ITA14B (e da ITA27) — e por que foram revogadas
A antiga ITA 14B, posteriormente alterada pela ITA 27, preenchia a lacuna conceitual do decreto ao definir quais equipamentos deveriam ser considerados de uso restrito.
Ela classificava como PCE, por exemplo:
I – Equipamentos de visão noturna de Geração II ou superior
- Geração II: maior resolução e sensibilidade.
- Geração III e IV: maior alcance, durabilidade e resistência à luz.
II – Equipamentos termais passivos resfriados
- Tecnologia de alta sensibilidade térmica, tipicamente usada em aplicações militares.
III – Termais com alcance ≥ 250m pelo Critério Johnson
- Capacidade de detecção com 90% de probabilidade a longas distâncias.
IV – Lunetas com recursos termais ou de visão noturna
Essas definições, embora técnicas, acabaram abrangendo quase todos os equipamentos modernos, criando um conflito direto com o Decreto 10.030 — que restringe apenas o que é de interesse militar ou policial, não tudo que é tecnologicamente avançado.
Por que a ITA 14B/27 foi revogada?
Porque extrapolava o decreto, tornando praticamente todo o mercado de visão noturna e termais sujeito a controle restritivo — inclusive produtos sem aplicação militar, violando o princípio da legalidade e da hierarquia normativa.
A revogação devolveu coerência jurídica, mas deixou um vácuo: agora não existe norma que defina objetivamente o que é “uso militar/policial”.
Consequências para o setor e a fiscalização
A ausência de uma regulamentação complementar clara produz:
→ Insegurança jurídica
Fabricantes, importadores e usuários não sabem exatamente o que pode ou não pode ser vendido, importado ou utilizado.
→ Interpretações abusivas
Agentes fiscalizadores, sem parâmetro técnico, podem classificar erroneamente qualquer miras termal como PCE, muitas vezes de forma ilegal.
→ Prejuízo à inovação e ao mercado
Restrições excessivas freiam pesquisa, desenvolvimento e competitividade de empresas brasileiras.
O equívoco recorrente: “Todo acessório é PCE”
Alguns fiscais usam o conceito de “acessório de arma de fogo” do glossário do Decreto 10.030 como justificativa para autuar usuários.
Mas esse raciocínio é juridicamente incorreto.
Exemplo clássico: lunetas, red dots e miras holográficas.
O STF (Supremo Tribunal Federal), na Rcl 67.612/SC (2024), confirmou que não são PCE, porque nunca foram listadas formalmente como tal.
Isso desmonta o argumento de que “melhorar o desempenho do atirador” torna automaticamente um acessório controlado.
Parâmetros Internacionais: O caminho para a regulação
Como o decreto fala em “uso militar”, a classificação deve seguir referências reconhecidas internacionalmente:
→ Arranjo de Wassenaar
Define tecnologias sensíveis e critérios para controle de exportação.
→ Regulamentos da União Europeia
Possuem listas detalhadas de equipamentos militares e de dupla aplicação.
→ Sistema de Catalogação da OTAN (NCS)
Embora não seja norma de controle, fornece categorização logística que ajuda a identificar equipamentos genuinamente militares.
Esses padrões deixam claro que um equipamento civil de caça ou observação ambiental não se torna militar apenas por ter boa qualidade óptica ou eletrônica.
A urgência de uma nova regulamentação
O cenário atual exige que o Exército publique uma nova instrução técnica que:
- Defina objetivamente o que caracteriza uso militar/policial.
- Diferencie equipamentos civis avançados de equipamentos militares sensíveis.
- Evite criminalização indevida de atividades lícitas, como caça e tiro esportivo.
- Harmonize o controle com a legislação federal e com padrões internacionais.
Uma regulamentação moderna precisa considerar o estado da arte: fusão de sensores, inteligência artificial, realidade aumentada e dispositivos multispectrais — recursos já comuns em equipamentos civis e militares.
Segurança jurídica depende de nova norma do Exército
A revogação da ITA 14B eliminou um excesso regulatório, mas deixou um vazio. O Decreto 10.030 continua válido, mas sem regulamentação clara seu dispositivo torna-se de difícil aplicação, abrindo espaço para arbitrariedades e fragilizando o ambiente jurídico do setor.
Para garantir segurança jurídica, estimular inovação e respeitar direitos individuais, é essencial que o Exército publique uma norma técnica equilibrada, transparente e alinhada com padrões internacionais”.
Somente assim será possível diferenciar corretamente equipamentos civis e militares, protegendo tanto o mercado quanto o interesse público.