
Um único disparo acidental de um policial com uma pistola Sig Sauer P320, ainda no coldre, foi o ponto de partida para uma investigação técnica conduzida pelo Laboratório de Pesquisa Balística do FBI (Federal Bureau of Investigation), que se estendeu por um ano.
O relatório técnico (leia na íntegra) foi disponibilizado nas últimas semanas, após solicitação de registros públicos da imprensa americana feita à Polícia Estadual de Michigan, órgão ao qual pertencia a arma analisada.
O caso, registrado em julho de 2024, envolveu um modelo M18 da P320, pistola hoje usada pelo Exército americano.
Segundo o relatório, o armamento “disparou de forma não intencional” enquanto ainda estava acondicionado no coldre, diante de múltiplas testemunhas.
O caso
O relatório relata que a Polícia Estadual de Michigan executou uma troca de pistolas Glock para a Sig Sauer M18. Segundo consta, o processo de transição incluiu a “entrega dos equipamentos de apoio, o treinamento de cada integrante com um curso de tiro de 1.200 disparos e a qualificação de cada um conforme o curso oficial de qualificação com pistola do departamento.”
O FBI relata que “em 31 de julho de 2024, um policial motociclista estava em uma área de viaturas junto a outros colegas quando sua pistola Sig Sauer M18, fornecida pelo departamento, disparou sem comando. A arma estaria devidamente acondicionada no coldre fornecido pelo departamento, modelo Alien Gear Rapid Force Level 3, no momento do disparo”.
“De acordo com a declaração do policial da MSP e com os relatos das testemunhas presentes, em nenhum momento o gatilho foi pressionado, intencional ou acidentalmente. O policial segurava objetos nas mãos no momento do incidente, incluindo um chaveiro”, diz o documento.
A arma foi então, ainda no coldre, foi removida da perna do agente e colocada em um saco de evidências para posterior análise.
Alteração no gatilho
O FBI afirma que quando a Polícia Estadual de Michigan recebeu as pistolas da Sig Sauer, foram identificados problemas de “gatilho morto” (dead trigger), quando não há deflagração da munição em seu acionamento.
No caso, a Sig Sauer concluiu que os gatilhos estavam fora das especificações e realizou um desbaste de 0,020 polegadas. A maior parte dos gatilhos atualizados foi instalada pela própria Sig Sauer, porém o gatilho da arma analisada foi atualizado por um armeiro da MSP treinado na plataforma Sig Sauer P320.
Pontos críticos do relatório
O FBI realizou um extenso escrutínio da arma, incluindo raio-X e avaliação individual de cada peça.
Entre os aspectos destacados no documento do FBI, dois pontos concentram atenção. O primeiro envolve a mola de segurança do percussor, que teria mudado de posição durante os testes de recuo.
Essa mola é responsável por manter um pino de bloqueio ativo até que o gatilho seja acionado. Sua movimentação pode, teoricamente, comprometer esse último nível de segurança.
Entretando, uma janela foi aberta no ferrolho para visualização da mola. O FBI afirma que isso pode ter afetado a integridade do componente.
Cartuchos espoletados
Durante a simulação, os técnicos realizaram um experimento em que:
- A arma estava dentro do coldre;
- O engate do sear primário foi propositalmente liberado (simulando falha de retenção da peça);
- E nenhuma pressão foi aplicada ao gatilho.
Segundo o relatório, em pelo menos um dos testes, o cartucho foi percutido e disparado.
Ou seja: a arma disparou mesmo sem acionamento do gatilho, apenas com a liberação do engate e manipulação física da arma (como fricção e pressão do conjunto ferrolho/armação).
- Além disso, outros cartuchos não chegaram a disparar, mas apresentaram marcas na espoleta, indicando que o percussor os atingiu com força suficiente para quase provocar ignição.
Conclusão
O FBI afirma que não foi possível comprovar de forma conclusiva que houve um disparo não comandado na arma analisada.
No entanto, os testes demonstraram que, em condições específicas — com perda do engate do sear e movimentos típicos de policiais em serviço — é possível neutralizar a trava de segurança do percussor (striker safety lock), o último mecanismo de segurança da arma.
O relatório afirma que:
“A desativação da trava de segurança do percussor por meio de movimento e fricção cria uma condição que merece investigação adicional para avaliar completamente o risco potencial.”
A agência também afirma que não foi possível desenvolver um teste confiável para verificar a eficácia do sear secundário (segunda barreira de segurança caso o engate principal falhe).
Relatório reacende polêmica
A linha Sig Sauer P320 tem sido alvo de controvérsias desde 2017, quando a fabricante lançou um programa de “atualização voluntária” para seus primeiros modelos.
À época, a empresa redesenhou o mecanismo de disparo, incluindo um novo sear com entalhe secundário, uma alavanca de segurança para o percussor e mudanças no gatilho. A motivação era mitigar o risco de disparos em quedas — casos em que o armamento poderia ser acionado ao atingir o solo em certos ângulos.
Em nota ao portal americano Outdoor Life, a Sig Sauer reiterou que a P320 “só pode disparar quando o gatilho é puxado” e que todos os relatos de mau funcionamento são investigados.
“Neste momento, temos uma pistola que foi submetida ao maior volume de testes da história da Sig Sauer”, diz Phil Strader, vice-presidente de relações com o consumidor da empresa. “A conclusão dos nossos testes é clara: o disparo só ocorre quando o gatilho é movido para trás — o que levanta a pergunta: de que outra forma uma pistola deveria funcionar?”
Apesar da posição oficial, a fabricante enfrenta processos judiciais em diversas jurisdições. Embora a maioria tenha sido arquivada, houve derrotas nos tribunais da Geórgia e da Pensilvânia em 2024. No início deste ano, o estado de New Hampshire, onde a Sig Sauer está sediada, aprovou uma legislação que oferece proteção jurídica à empresa em ações futuras.
Relatos de disparo acidental não afetam vendas da Sig Sauer
Apesar das polêmicas, a popularidade da P320 parece não ter sido abalada. Segundo relatos À imprensa americana, como de Will Altherr, diretor de marketing digital do portal Guns.com, ao Outdoor Life, as vendas da plataforma P320 caíram apenas 1,7% no primeiro semestre de 2025, enquanto o mercado total de armas nos EUA encolheu cerca de 3,9%. “Esse desempenho estável sugere interesse contínuo dos consumidores pela série”, declarou.
Na Sprague’s Sports, tradicional loja do Arizona, as vendas da P320 aumentaram 59% em relação ao mesmo período do ano anterior. O proprietário Richard Sprague afirma que os relatos negativos são, na maioria das vezes, levantados por detratores da marca.
“Nossos vendedores dizem que esse tipo de crítica só aparece quando alguém quer colocar defeito — geralmente fãs da Glock ou quem já chega com essa intenção.”
Adoção institucional continua
Mesmo com algumas agências tendo trocado de fornecedor, a maior parte das instituições que adotaram a plataforma P320 ou M18 continua utilizando-a. “Qualquer agência que tenha feito a devida diligência manteve o uso”, afirmou Strader.
Esse é o caso da própria Polícia Estadual de Michigan, protagonista do episódio mais recente, que permanece com a pistola Sig Sauer M18 em sua dotação.