Taurus, Springfield e consultoria pedem impugnação

Fuzil Glock: Concorrentes acusam direcionamento em pregão de Alagoas

Edital conta com exigências específicas e testes fora do padrão; Secretário de Alagoas e servidores cobram diárias em viagem financiada pela fabricante; SSP e Glock não responderam à reportagem; O texto foi atualizado para incluir a informação de que também a Sig Sauer questiona o pregão, na Justiça de Alagoas

O novo fuzil da Glock, GR115
O pregão que envolve o novo fuzil Glock virou alvo de discussão entre fabricantes de armas numa licitação multimilionária de Alagoas (Compras.Gov/TGT)

O pregão multimilionário do estado de Alagoas, destinado à compra de 1.540 fuzis, em que a Glock concorreu e ganhou com seu inédito fuzil GR-115, pode estar envolta em problemas, segunda três empresas concorrentes que participaram da disputa e uma consultoria especializada contratada por outra fabricante de armas de fogo.

Elas alegam que o edital (leia na íntegra) do pregão, aberto no final de agosto, é direcionado à fabricante austríaca, e pedem impugnação do processo. Os três pedidos foram negados pelo pregoeiro. Outra fabricante foi à justiça alagoana tentar impedir o processo.

Springfield, Taurus e Boanova questionam pregão; Sig Sauer vai ao Tribunal de Contas

O questionamento foi feito publicamente pela Springfield Armory, pela Taurus Armas e pelo consultor Jose Boanova, que atua em licitações do mercado de defesa e que foi contratado por uma outra fabricante. Eles apontam para diferentes pontos no edital.

Entre eles, a exigência de características próprias do novo fuzil Glock no texto, como desmontagem sem uso de ferramentas; que o processo foi mal feito, obtendo só uma cotação de preços; que o edital traz flexibilidade em outros temas, como redução do tempo da ‘maturidade de teste‘, termo pedido às fabricantes para comprovação do emprego da arma com forças de segurança (entenda os argumentos em detalhes abaixo, na parte 2), entre outros aspectos.

A fabricante suíço-alemã Sig Sauer, através de seu representante no Brasil, questiona o pregão no Tribunal de Contas de Alagoas. As alegações são similares. A companhia afirma, ainda, que há uma “reincidência da Amgesp [agência que organizou o edital] em editais direcionados, beneficiando reiteradamente a Glock”.

A reportagem conversou com representantes da indústria, que disputaram (e que deixaram de disputar o pregão sob a mesma alegação). Eles afirmam também que os testes da arma, que começam na próxima segunda-feira (29), na Áustria, tem peculiaridades, como um ensaio de queda com arma travada, além de um teste de resistência com 30 mil tiros (entenda na parte 3 da reportagem).

Os testes não seguem as normas da Senasp (Secretaria Nacional de Segurança Pública, do Ministério da Justiça). O órgão traz normativas técnicas que padronizam testes de licitações e pregões para compra de armas por forças públicas, que são obrigatórias em caso de aquisição com uso de verba federal, como pode ser o caso desse pregão, de acordo com uma parte do edital.

A Glock e a SSP foram questionadas sobre o assunto e não responderam à reportagem. O espaço segue aberto para manifestação.

1: Pregão contou com nove empresas; grandes nomes deixaram de participar

No pregão, nove empresas apresentaram preços no total. Entre nomes conhecidos, a gaúcha Taurus, além de representantes da Sig Sauer e Daniel Defense.

Outras fabricantes conhecidas de carabinas, que participam de licitações no Brasil, como Springfield Armory, CZ (Česká Zbrojovka), B&T AG e IWI, não apresentaram nenhuma proposta.

O THE GUN TRADE conversou com alguns representantes dessas empresas, os quais afirmam não terem proposto nada pois suas armas não atenderiam às exigências específicas do edital, o que também é questionado por eles.

A Glock acabou vencendo o pregão, com o preço unitário do fuzil a R$ 17,6 mil, ou R$ 27,1 milhões. Após o pedido do pregoeiro, a empresa apresentou então o fuzil GR-115. Foi a primeira aparição pública do fuzil num pregão, confirmando os boatos sobre a existência da arma. Em documentos fornecidos ao pregoeiro, fabricante afirma ter vendido 59 rifles similares para a polícia de Queensland, na Austrália.

A Taurus chegou a ficar em primeiro lugar, propondo R$ 15 mil por fuzil (ou R$ 23 milhões). O pregoeiro então pediu envio dos documentos. A Taurus, que também não tem nenhuma arma que se enquadre nas especificações, pediu prorrogação, enquanto questionava as exigências do edital. Acabou desclassificada.

Com isso, a fabricante europeia já passou para a fase de testes de habilitação do fuzil, que começam na próxima segunda-feira (29), na capital austríaca, Viena, e arredores. Por lá, uma comissão técnica de Alagoas, custeada pela empresa, acompanhará os testes, que serão abertos e contarão com a presença de vários representantes e engenheiros contratados pela indústria de armas.

O secretário de segurança pública de Alagoas acompanha a comissão. Ele e outros servidores solicitaram o pagamento de diárias ao estado, apesar do pregoeiro afirmar que a viagem será “sem ônus” ao erário público (entenda mais na parte 4. do texto). A SSP foi questionada sobre o assunto e não respondeu à reportagem.

2. Os principais argumentos das empresas

  • Taurus Armas:
    • A fabricante gaúcha contesta a obrigação de desmontagem sem ferramentas (reténs, tecla de segurança e guarda-mão), presente no edital. A empresa considera incompatível com armas da plataforma AR. Essa estrutura que dispensa ferramentaria seria uma das novidades do novo fuzil Glock, como apurou o THE GUN TRADE.Teste
    • A empresa também questiona a exigência de cano em aço CMV, pedindo aceitação de equivalentes (ela usa como exemplo o padrão SAE 4140/4150 com nitrocarbonetação).
  • Springfield Armory
    • A fabricante americana questiona a limitação simultânea de comprimento do cano, de 14,5″ e do comprimento total da arma.
    • Ela defende que só o comprimento total seria suficiente, preservando desempenho balístico.
    • Também nota técnica sugerindo cano mínimo de 16” para manter energia e alcance. A fabricante americana lançou, no ano passado, o fuzil Helion, com esse tamanho de cano, e tem buscado licitações no mercado com a nova arma.
  • José Luiz Boanova Filho (Consultor)
    • Cotação: Afirma que a Glock teria sido a única a receber o Termo de Referência durante a pesquisa de preços. Ele também relata o envio de pedidos de cotação a endereços eletrônicos inexistentes e a lojistas de caça e pesca e até de airsoft.
    • Diz que os requisitos de habilitação técnica do Termo de Referência seriam genéricos (“fornecimento de armas de fogo”), permitindo que empresas sem histórico de carabinas 5,56 (caso da Glock) comprovem aptidão com vendas de pistolas.
    • Contestou a exigência de apenas 1 ano de maturidade técnica, defendendo pelo menos 3 anos de uso operacional comprovado, como, segundo o consultor, ocorre em outros pregões e licitações.
    • Também questionou a exigência de tecla de segurança com encaixe ajustável em 50° ou 90° sem ferramentas, apontando que o requisito é incomum no mercado e poderia restringir a competição.

“Solicito ainda, a fim de não restar qualquer dúvida a respeito desse novíssimo requisito técnico, seja esclarecido qual o fuzil ou carabina do mercado (marca e modelo) que teria inspirado o setor demandante a exigir tal requisito técnico, já que desconheço qualquer armamento que possua tal característica”, diz o consultor no pedido de impugnação.

3. Teste de queda com arma travada e 30 mil tiros: fora do padrão

Há ainda uma parte do edital referente ao ensaio de queda da arma, praxe em todo teste de habilitação de armas de fogo, feita a fim de verificar se o armamento tem chance de disparos acidentais caso seja, por exemplo, derrubado no chão.

No caso do fuzil Glock, o edital exige que seja feito com a arma travada. Reprova-se a arma que marcar a espoleta nesse quesito.

Já na portaria Senasp (íntegra), o teste é realizado tanto com arma travada como destravada. E a marcação de espoleta não é critério eliminatório —visto que em plataformas AR é “comum” a marcação (e não deflagração) da espoleta em testes de queda.

O THE GUN TRADE conversou com um especialista independente, que confirma essa idiossincracia do equipamento AR: é normal a marcação leve de espoletas, tanto no fechamento da culatra quanto numa eventual queda. No caso, na plataforma, o percussor é ‘flutuante’, estando sempre livre em seu alojamento e encosta nas espoletas de forma leve.

“Por uma questão de inércia o percussor segue o movimento e cria uma marca, em regra, longe de ser suficiente de causar uma deformação inicial capaz de causar a deflagração”, diz um especialista consultado pela reportagem.

Edital de Alagoas prevê teste com arma travada
O ensaio de queda exigido pela Senasp prevê teste com arma travada e destravada

Já o ensaio de resistência, o famigerado teste de tiro, exigirá 30 mil disparos. A arma pode ser resfriada a cada 200 tiros, e limpa com ar-comprimido a cada mil.

A norma diverge da Senasp, que exige 10 mil tiros, com características similares no resfriamento e limpeza.

Em pregões que usam verba federal, é obrigatório seguir os preceitos da Senasp. Segundo a portaria nº 104/2020, “para aquisições realizadas com recursos públicos oriundos do Orçamento Geral da União, incluindo do Fundo Nacional de Segurança Pública, deverão observar as Normas Técnicas Senasp”. Para pregões sem uso de verba federal, o uso das normas são ‘facultativas’.

No edital de Alagoas, afirma-se que a aquisição está prevista no Plano de Ação do estado, “viabilizado por meio do Eixo de Fortalecimento das instituições de Segurança Pública de Defesa Social – FISPDS, firmado entre o estado de Alagoas (…) e o Governo Federal”.

Edital cita acordo do estado com o governo federal para realização da aquisição das carabinas (reprodução/Amgesp)

A SSP foi contatada pela reportagem sobre uso de verba federal na aquisição e não respondeu às perguntas enviadas. O espaço segue aberto para manifestação.

4. Direcionado ou não?

Um especialista independente ouvido pelo THE GUN TRADE considerou a resolução do edital que exige desmontagem sem ferramentas como problemática e passível de direcionamento, visto que seria uma solução presente apenas na nova plataforma AR da Glock. Ele também afirma que o requisito é “pouco essencial para aplicação prática do produto”.

Em relação ao argumento de maturidade da arma, exposto pelo consultor Jose Boanova, o especialista afirma “o que vem sendo praticado [exigência de dois a três anos] não é necessariamente uma boa prática”. Em relação à redução do tempo de maturidade, ele afirma que, “historicamente, não se demanda desempenho nas licitações”, afirma.

“A forma de se tentar garantir qualidade é de forma indireta. A qualidade acaba sendo aferida nos testes”, diz o especialista. “Acho que a partir desse momento, você consegue flexibilizar os demais, para não correr o risco de deixar de fora uma fabricante com tecnologia inovadora”.

À reportagem, o consultor Boanova rebate o argumento. “Como você pode comparar um teste feito em laboratório, sob condições ideais de temperatura, umidade, etc?”, indaga. Ele afirma que o teste de habilitação não substitui o uso operacional por forças de segurança. “O policial vai deixar ela cair, vai dar tiro sem limpar a arma, com sujeira, após entrar na lama”, diz.

“Não tem como simular em laboratório as condições reais. Um exemplo desse é a própria pistola [P320] da Sig Sauer. O mercado civil já tinha comprado, o exército americano também. Adiantou fazer teste?”, pontua, sobre os problemas apresentados pela pistola, que contou com diversos registros de disparos não intencionais ao longo dos anos e foi alvo de escrutínio por forças públicas, com contratos cancelados. A SIG também chegou a abriu um programa voluntário de substituição de peças para os usuários, o que foi chamado de ‘recall’ por parte do mercado. A empresa nega.

“O dia a dia da arma é que vai te dizer se a arma é boa ou não. Nunca estarei convencido de que o uso diário de uma arma dessa de uma força policial vai poder ser substituído por um teste”, afirma Boanova.

5. Testes serão realizados na Áustria; comissão viaja às custas da Glock, mas secretário cobra diárias

Os testes do fuzil Glock estão previstos para durar 8 dias. Eles começam nesta segunda-feira (29), e vão até o dia 8, com possibilidade de realização de mais um teste extra no dia seguinte.

Serão realizados em dois estandes de tiro, um na capital austríaca, Viena, e outro nas proximidades. Houve uma alteração no roteiro, visto que inicialmente seriam realizados no sul do país, em Ferlach, numa unidade da empresa.

A fim de “proteger a propriedade intelectual da Glock”, a fabricante optou por mudar o local de teste. O THE GUN TRADE apurou que várias empresas de armas contrataram engenheiros para presenciar o teste, aberto ao público, o que poderia ter feito a Glock resguardar o espaço.

Para a viagem, a empresa vai custear toda a comissão técnica da SSP de Alagoas, de acordo com uma mensagem do pregoeiro (íntegra ), publicada no dia 24 de setembro, que afirma que a equipe irá se deslocar aos locais de teste “sem ônus ao estado“, com a empresa arrematante cobrindo todos os custos.

No entanto, o secretário de segurança pública de Alagoas, Flávio Saraiva, e outros quatro servidores, solicitaram o pagamento de diárias (íntegra) no valor de R$ 111 mil (R$ 27,9 mil x 4), de acordo com o Diário Oficial de Alagoas. O pagamento foi autorizado pelo próprio secretário. A reportagem questionou a SSP sobre o tema e não obteve retorno. O espaço segue aberto para manifestação.

O secretário esteve na Áustria também no início do mês, para um processo anterior de compras de pistola Glock, cujo processo foi realizado em 2024. O roteiro também incluiu Israel, para registro de preço para a futura e eventual aquisição de metralhadoras leves para o estado.